Não posso negar quem você é

Trilha sonora.

Querido pai,

Por muito tempo defini nossa relação como inexistente. Costuma pensar que, em algum espaço, desde meu nascimento até aqui, eu havia o decepcionado de forma irreversível. Eu procurava minhas próprias razões para todo esse silêncio que foi implantado entre nós e que tanto me machucava. Acomodamo-nos nessa relação letárgica de arroz, feijão e silêncio. A barreira da diferença afastávamos mais ainda e a covardia ocupou o espaço que antes eram das poucas palavras trocadas. Filha de peixe, peixinho é. 

Passamos por situações desoladoras. Em alguns dias, eu podia sentir o teto desabar por cima de nossas cabeças. Nos dias das crianças, o meu desejo era dizer que não me fazia diferença os doces ou brinquedos, eu queria você de presente. No dia dos pais, eu era incapaz de um abraço. A sua personalidade explosiva sempre me assustou. Eu deixei de ser uma princesa porque eu nunca fui uma, mas nunca deixei de ser a princesa do papai. Mesmo que, na minha turbulenta adolescência, eu me sentisse uma estranha para quem compartilhava o mesmo sangue que eu, eu nunca quis um pai diferente. Mais afetuoso e aberto, talvez, mas nunca um cara engravatado que controlasse empresas. 

Eu precisei me afastar, crescer, me reinventar e olhar nossa convivência de longe para entender que nunca foi a  diferença que acentuou nossa distância, foi o silêncio. Hoje eu me enxergo tendo muito de você. Sendo você. Precisou que eu me visse no espelho, sem reflexo de pai e de mãe, para que eu enxergasse que não há diferenças entre você e eu. Para que eu abrisse os olhos e descobrisse que o espelho em que me espelho são seus braços queimados e cansados de sol. Que o Belchior que agora toca na caixinha de música é a sentença final de que eu precisava ler as entrelinhas para descobrir todo o afeto que sempre nos juntou.

Eu sempre te culpei por não ser como os outros pais que aninham as filhas no colo a fim de omitir as durezas do mundo. Mas eu sei que a imagem do meu corpo perambulando pelas ruas violentas dessa cidade que já não é a sua te inibe de muitas noites de sono tranquilo. Mas não se preocupe, você me ensinou que a vida é esse levanta-e-cai, que é feita de compromissos urgentes e sérios e que devo honrá-los com integridade moral. Você me criou me preparando para a vida e não em um castelo ilusório cor-de-rosa. Eu sei que doeu todas as vezes que me deixou chorando sozinha e sei que doeu mais ainda a impotência de não entender porque eu me sentia tão incapaz de viver por alguns anos. Minhas lágrimas doíam em mim, mas doíam mais em você. E em todas as vezes que chorei sem colo, eu aprendi que se eu espernear, dói muito mais.

Sabe, pai, a vida longe de você e da mãe tem um custo alto. Em alguns dias o silêncio e a solidão de ser independente e responsável gritam alto no meu ouvido. O reconhecimento no emprego, as experiências da faculdade, cada degrau que subo em direção a pessoa que eu sou destinada a ser não parecem ter muito sentido quando o domingo chega e esse apartamento pede TV, rádio e viola fazendo minha cabeça doer. Mas eu sou grata por você nunca ter me ensinado a esperar que um príncipe encantado facilitasse o processo de ter uma vida estável. Se hoje eu sei me cuidar sozinha, acredite, eu aprendi com você. Minha cara está dormente de tanto bater a cara no muro, os meus joelhos estão cheios de hematomas de tanto cair e me levantar. Mas a vida espera que a gente a encare de cara levada e peito aberto. Eu tropeço mil vezes, mato minhas próprias baratas, troco minhas próprias lâmpadas, mas eu não desisto não. 

Existem mil lições que você me ensinou e eu nem sei se você sabe que me ensinou. Mas eu sei que aprendi, assim como, eu sei que têm mil coisas que você precisa aprender sobre mim. Imagino que deve ser difícil aceitar que meu coração bata mais alto e mais forte por outras meninas, minhas roupas ou minhas tatuagens. Mas eu sei que nada disso importa quando eu toco o interfone de casa e entro pela sala, seus olhos me abraçam e eu sei que você suspira aliviado porque sua menininha já não é criança, mas quando ela está debaixo do seu teto, deitar a cabeça sobre o travesseiro é mais fácil.

Obrigada por você não criar uma princesa indefesa, obrigada por tentar me entender e obrigada pelo gosto musical que herdei de você junto com o prazer de abrir uma cerveja e me refrescar. Você é o melhor pai do jeito que é e pode ser.

Feliz aniversário, sinto saudade.

Não posso negar quem você é

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