O território caótico sem lei.

Lembro-me, ainda com certa curiosidade, os primeiros dias dentro da Universidade Federal. Tudo cheirava a novidade e se pintava inspirador. Os diversos idiomas sendo treinados entre alunos no pátio da Letras, a mistura simbiótica de alunos e professores que matavam tempo por ali. Demorou algum tempo até que eu fizesse amizade. De forma incomum, me vi dentro de um grupo de três. Duas pessoas altamente interessantes e surpreendentes, aqueles que pintariam comigo os trilhos da vida acadêmica até o seu final. E, por sorte, um pouco mais além do que esses limites universitários. 

Dentre esses dois, lembro o estranhamento que me ocorreu a primeiro momento, quando perguntei a uma amiga o porquê não conseguia encontrá-la em nenhuma rede social. “É porque eu não tenho”, disse ela com a maior naturalidade do mundo. Nada. Nem Twitter, nem Snapchat e se ela ouvisse a terminologia Facebook, juro que podia vê-la se arrepiar. Hoje, um ano e meio depois, eu observo a cena com admiração. E desde esse encontro, desde que retomei os trilhos do curso superior, eu desenvolvi uma visão crítica a cerca de toda essa conectividade até chegar aqui, onde eu me livrei de todas as minhas redes sociais. 

Nesse ponto, me recordo, como motivo imediato toda a discussão sobre comunicação, sociedade e cultura aliadas à nova cultura de tecnologia a qual Umberto Eco dedicou parte de sua intelectualidade. Em entrevista à revista Época em 2011, Eco, ao ser questionado se a internet apresentava perigo ao saber, afirmou o seguinte: 

“A internet não seleciona a informação. Há de tudo por lá. A Wikipédia presta um desserviço ao internauta. Outro dia publicaram fofocas a meu respeito, e tive de intervir e corrigir os erros e absurdos. A internet ainda é um mundo selvagem e perigoso. Tudo surge lá sem hierarquia. A imensa quantidade de coisas que circula é pior que a falta de informação. O excesso de informação provoca a amnésia. Informação demais faz mal. Quando não lembramos o que aprendemos, ficamos parecidos com animais. Conhecer é cortar, é selecionar”.

Partimos desse ponto, onde contrariando Isaac Asimov e sua respeitável genialidade, ao prever em 1888, a importância da Internet na educação e em nossas vidas e como o computador é uma máquina de saber acessível à todos, em pleno ano de 2016, vemos a Era Digital se transformar em um problema de comunicação tanto quanto formadora de uma massa alienadora. 

É claro que sabemos quais são os sites e bancos de dados confiáveis e isso é excelentíssimo porque promove aprendizado, facilita na busca feita em pesquisas, auxilia aquele aluno que demonstra dificuldade em sala de aula que pode  utilizar toda essa facilidade de maneira didática ou não. Mas me refiro aqui à potencialização da estupidez humana que também vive à sombra da problemática comunicação incessante e rápida. Como a disseminação de notícias falsas e irrelevantes. Tornou-se hábito trocar o livro impresso por resenhas disponibilizadas no Google, por exemplo. Mas qual a qualidade do que estamos lendo? O desejo pelo conhecimento ainda existe, mas a velocidade da informação nos faz correr ainda mais com o aprendizado, tornando o conhecimento algo secundário. Estamos o tempo todo lendo artigos, notícias e textos dos diversos gêneros compartilhados em mensagens instantâneas por nossos contatos. Mas a maioria dessas leituras são vagas e superficiais. Com a leitura rápida do que nos interessa, descartando aquilo que julgamos irrelevantes, é cada vez mais comum observar o impacto disso no hábito de leitura de jovens. E informação sem direcionamento, leitura sem orientação, não é nada. A longo prazo, o resultado pedagógico é trágico. Tornamo-nos analfabetos funcionais. 

Além da perda de interesse por literatura, é cada vez mais comum a dispersão da concentração. No que se lê, no que se fala, no que se ouve, no que se sabe. É tudo efêmero e exige um esforço hediondo para se fazer a aula, a palestra e até mesmo a conversa descontraída entre amigos algo mais interessante do que a tela do celular. Dito isso, esse é um comportamento que pude apontar em mim mesma como consequência de toda tecnologia posta a meu favor. Houve um tempo em que não conseguia ler, um filme não me prendia, a aula mais genial era angustiante porque a recreação das redes sociais havia me transformado em um sujeito altamente viciada em permanecer on-line. Alimentando um ideal raso, utópico e inocente de comunicação e superexposição. Aquilo era um comportamento destrutivo para mim que sempre fui uma grande amante do conhecimento. Consumia-me lentamente refletir sobre os conceitos de comunicação e perceber que eu estava me alienando também. 

O processo de alienação a qual me refiro é que a comunicação, cada vez mais rasa, se produz através de muito ruído, dá proporção de fala muito enorme e nesse processo, selecionamos o que gostaríamos de ouvir sem nunca sermos contrariados em nossas ideias por um ponto de vista contrário. E, caso surja alguém, contrário à nossa ideologia política, por exemplo, tomamos isso como afronta. Ninguém discute, todo mundo se ofende. Principalmente nesse período nefasto que enfrentamos na política brasileira. As brigas-politizadas-facebookianas são cenários decorrentes que, ninguém sabendo lidar com o contrário, por vezes, põe fim em relações interpessoais que seriam ou foram interessantíssimas. A comunicação nada mais é, se não, a troca de informação. O dizer cheio de conhecimento do locutor e a reação do interlocutor, que devolve o meu discurso enriquecido com os conhecimentos que ele possui. Mas vivemos em uma bola onde essa comunicação só é possível ser estabelecida, caso, o meu interlocutor reproduza o que eu gostaria de ouvir sem nunca me contrariar. É a mesma linha de raciocínio dos europeus do século XIX que se esforçaram para criar inimigos invisíveis. E com isso, não me surpreende que ‘Tay’, o projeto ambicioso de inteligência artificial da Microsoft, tenha se tornado um monstro nazista em menos de 24h, sendo que a modelaram para se comunicar como uma inocente adolescente através de tweets. E o comportamento de Tay foi apenas uma resposta que ela adquiriu ao manter contato com internautas humanos. 

O impacto da exposição desenfreada ao qual nos submetemos é aterrorizador desde a forma que conduzimos as redes sociais, moldando nossas vidas em torno delas quanto para a construção subjetiva do eu. É uma ferramenta de mão dupla que coloca o pior de nós sob holofotes como também interfere nas relações interpessoais. Ninguém está sozinho, nada está sob sigilo. Todos queremos aprender, mas informação que traz esclarecimento momentâneo e logo é descartada, não é conhecimento. E sem conhecimento, nos assemelhamos a animais. No mais, cabe a cada um, revisar a forma como nos comportamos diante ao populismo midiático no qual vivemos. A imensa quantidade de informações que circula é pior que falta de informação, tudo surge sem hierarquia. Inclusive a exposição de nós mesmos. 

 

 

 

 

O território caótico sem lei.

Um comentário sobre “O território caótico sem lei.

  1. O texto está tão bom que parece quase desnecessário afirmar.

    O que mais me impressiona na tua inteligência expansiva é a versatilidade da tua prosa, que normalmente se ambienta numa crônica intimista e sensual, com toques românticos, cinematográficos, trágicos e existencialistas, mas que, ora ou outra, se transmuta numa poderosa verve jornalística, cheia de preciosa sabedoria, compreensão e experiência.

    Fico muito feliz de estar acompanhando teus progressos.

    Obrigado, Nay.

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