O amor é tão suspeito quanto nós.

Meus olhos procuravam com sofrimento o relógio pendurado na parede que dividia a sala e o corredor, são quinze para as oito, repetia o processo mental em voz alta para certificar-me que algo ainda me habitava. Ainda que fosse apenas uma voz macerada pelo tempo seco e os cigarros que eram acesos incansavelmente. Não sabia que perseguindo minha própria sanidade dentro de um minúsculo apartamento com paredes e teto manchados de mofo, vinho e outras vidas, ela sairia correndo e batendo as portas com a urgência e o desespero de uma mulher violentada que procura por algum socorro. Vivíamos a lenta compenetração de um espaço comum, como dois astros que gravitam em torno de si próprios em órbitas cada vez mais distantes.

Vagava como um fantasma entre a sala e a cozinha em silêncio e sem pressa, sem perceber que também vagava dentro de mim procurando pelo resquício de uma lucidez sóbria. A tragédia do silêncio é o grito ininterrupto que vem a seguir. Estava envolvida por uma concha e dali não conseguia me mover. Estava doente de uma doença pela qual nunca pedi e da qual não queria me curar. Puxava a pele nas costelas esticando-a até que a dor fosse insuportável para averiguar se podia enxergar o que havia por dentro da carne, mas ali era apenas costelas e pele, não encontrava outra coisa se não, dor. Mas sentia que medindo os centímetros entre a carne esticada e os ossos, nesse gesto mórbido, me sentiria menos culpada pelos meus lentos processos de esfacelamento. Procurava por fraqueza, por angústia, por um detrimento emocional qualquer que encobrisse o susto de encontrar alguém que rejeitava o mundo na mesma proporção com a qual me sentia rejeitada por ele.

Estava ligada por um fio invisível e elástico a alguém que temia tanto as possibilidades quanto eu. Uma relação assimétrica, feita de longas ausências e silêncios massacrantes  em que compartilhávamos o espaço minimalista, visivelmente limpo e calmo em que ambos podíamos voltar a respirar. Minha lucidez é cética. Não afeta-se com as tragédias ocorridas fora de mim. Minha lucidez agora estava em jogo porque temia perdê-la em nome de alguém que não o meu próprio. Infestada por uma estranheza e solidão tão parecida com a que reconheço no espelho que temo acordar amanhã e me perceber indefinida. Aquele par de olhos me transformava em alguém louca e dissimulada esperando pela mais nova decepção. Aquele par de mãos fajutos e desajustados talvez fossem pura encenação. Sentia que já não conseguia encontrar o caminho de volta para casa, o amor é tão suspeitos quanto nós, dependendo de tragédias, cervejas quentes e horóscopos para se equilibrar entre dois corpos-precipícios.

 

 

O amor é tão suspeito quanto nós.

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